segunda-feira, 26 de maio de 2008

Chã das Caldeiras

O menino estava sentado atrás do "funco", olhando, em extâse, a chuva que caía na fria tarde de setembro. Sentiam-se, o menino, os outros meninos, os pais e os "dodonos" e "donas", dizia eu que sentiam-se todos leves, aliviados do peso imposto pelo temor de um ano de "azágua mofino".
Na "padjigal" só tem um restinho de uvas moscatel, daquelas mais tardias, que amadurecem apenas quando as outras já se apodreceram de tão maduras, apenas para dizerem (falo das moscatel), em linguagem de uvas, sou mais gostosa, sou mais gostosa.
A chuva dá uma trégua, 'tempo dja da', como dizem o menino e os outros meninos. Todos saem às pressas ao campo para apanhar o pasto para o gado e depois correr atrás de "txantxiroti", molhados pela chuva e com dificuldades para voar. Que alegria!
-É melhor voltarmos para casa -diz o menino mais velho
-Porquê? - querem saber os outros
-'Capel' ainda está no vulcão - diz o mais velho, fazendo referência a uma nuvem que fica em cima da cratera principal do vulcão e que, dizem os mais velhos e, obrigatoriamente, mais sábios, é sinal de muita chuva. Que regressem todos ,então, para o funco! Nem precisei pedir duas vezes.
Em instantes a chuva recomeça sua dança, com mais vigor agora, com mais vontade. Até parece que apenas estava esperando as crianças chegar em casa.
Já é noitinha e já é manhã...segundo dia.
Antes das seis da manhã o pai liga o rádio para ouvir notícias. Diz o locutor, aquele homenzinho que mora dentro do rádio, como imagina o menino, continuando, diz o locutor que a chuva caiu em todas as ilhas. Todos ficam radiantes.
- Venham tomar café - chama a prima. De novo, não foi preciso pedir duas vezes. Todos tomam café com leite de cabra, um pouquinho de açucar, pois as bocas são muitas e o açucar pouco, e um pedaço de 'gufongo'. Hoje é café de fidju, não café de n'ganha. Hoje choveu, hoje é dia de festa.
Desjejum acabado, todos se preparam para ir para 'boca fonte' trabalhar. Uns farão as covas, outros enterrarão as sementes, dois de milho e dois de feijão, dois de bongim e dois de milho, em cada cova. Outras farão a comida, tão desejada, depois de horas de labuta. O menino sonha com o dia em que ele não mais enterrará as sementes. Sonha com o dia em que terá sua própria enxada e fará as covas, como os meninos mais velhos. Mal sabe ele que ele será médico e que sonhará muito com os dias em que ele, os outros meninos, os pais, os "dodonos" e as "donas" ficavam atrás do "funco" vendo a chuva cair, nas frias tardes do mês de setembro.
Aquele abraço.
Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro

terça-feira, 20 de maio de 2008

Coisas que me fazem Bem

Algumas coisas são boas para mim, outras nem tanto. Minha vida, minha família, minha terra, tudo isso me faz bem.
É bom quando acordo de manhã e vejo meu filho feliz, com saúde. Minha vida se torna uma música que tem sentido, a letra e a melodia são completamente absorvidas pela minha alma. Isso me faz bem.
É bom ajudar alguém com seus padecimentos, trazer um pouco de dignidade aos que estão sendo empurrados de um lado para o outro, sem piedade, sem compaixão. Dizem uns que é assim mesmo, que alguns sofrem mais que outros, mas eu não me convenço com essa forma demasiado simplista de encarar o sofrimento alheio. Devo continuar me perguntando o que posso fazer para amenizar um pouco quem padece. Suas lágrimas não podem nunca parar de me incomodar, de me envergonhar ao pensar em não fazer algo.
Se eu seguir esses preceitos, que goze eu da minha profissão, que usufrua eu dos frutos que hão de nascer das sementes que hoje enterro na terra árida.
Deus é grande, assim como é grande a intolerância da raça humana, do homo chamado sapiens sapiens, termo esse redundante a meu ver. Seria isso para denotar grandeza, superioridade em relação aos outros animais, muito mais dotados de empatia que nós?!
Faz me bem escrever sobre as coisas que sinto, não apenas as que penso, assim como faz bem a um poeta dedicar seus mais belos versos à sua amada.
Omnia vincit amor, como já se disse.
Aquele abraço.
Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Profundamente Simples

Outro dia estive no Fogo e, com outra mentalidade depois de seis anos de Universidade, comecei a reparar num paradoxo que existe por lá, que sempre existiu, mas que antes eu não tinha reparado: nós somos profundamente superficiais e por isso, só por isso, somos felizes, com o punhado de nada que temos.
Nós não temos planos a longo prazo...podem alguns dizer que têm, mas eu não tinha. Sem saber, todos nós, filhos de Djarfogo, exercemos plenamente um dos pilares da felicidade plena: a cada dia os seus problemas. Não adianta sofrer por antecedência, ser cobaia da nossa mente maliciosa, ser refém de tristezas virtuais. Provavelmente todos esses pensamentos são estéreis. Nunca beijarão a face da realidade. Nunca se concretizarão. Tudo isso fazemos inconscientemente.
Nossas preocupações são promíscuas, rapidamente dissolvíveis, como o orvalho ao sol da manhã de inverno. Que bom, digamos nós! Não façamos questão do contrário!
Se um de nós se olhar, buscar o que existe no mais profundo do nosso ser, certamente encontrará paz, muita paz, paz que só existe na nossa terra, na nossa casa, na nossa vida. Demos todos graças a Deus, amém!
Aquele abraço.
Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro

domingo, 11 de maio de 2008

Eu e minhas Circunstâncias

Eu sou feito pelas circunstâncias, assim como qualquer outro. Dizem uns, que a ocasião faz o ladrão.
Na nossa terra, sonhamos todos em conhecer o mundo, é nosso destino, nossa teimosia. O eterno dilema do 'ter que ir querendo ficar'. Eu também teimei, saí do ventre de minha terra e me aventurei pelo mundo que, com ares de meretriz, me seduzia, enquanto ingénuo garoto.
Hoje não digo que me arrependo, pois consegui coisas que me farão feliz a vida inteira. Arrependo-me apenas das coisas que eu não fiz, não por desleixo, apenas por não saber o quanto eram importantes essas coisas.
Arrependo-me de não ter aproveitado mais minha terra, nossa música, nossos livros, nossos poemas sobre estiagens e fomes de épocas passadas. Arrependo-me também de não ter saído mais na chuva, de não ter decifrado que a chuva cai com o único desejo de lavar nossas almas, de secar nossas mágoas.
O arrependimento serve a mim, no sentido de me fazer ver as coisas lindas que existem em minha terra. Serve para me fazer entender a burrice do nosso 'regionalismo'. Para entender que o que une nossas separadas ilhas é nosso povo, nossa coragem de viver!
Sonho, logo existo, digo eu.
Aquele abraço

Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro