segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Bonança


Poucas coisas me fascinam tanto como a chuva. Acredito hoje ser isso culpa das muitas manhãs que eu passei deitado, olhando o mágico cenário produzido pelo aguaceiro caindo do céu, devagar, com calma, sempre em ritmo de marcha lenta.
Na minha terra existem os 'profetas do tempo', que, baseando-se em sua experiência, juram que, Amanhã vai chover gente, Com certeza. Não com essa certeza toda, mas as previsões deixavam todos animados, rezando para que se cumprissem. Alguns garantiam a chuva 'falando mantenha' logo cedo no dia seguinte, Claro está, Vê essa nuvem branca no cume do vulcão, o Capel?, Vejo, Pois, É sinal de chuva na certa, Queira Deus, Amém!
No dia seguinte a neblina chegou galopando os muitos montes, restos de regurgitações do nosso querido vulcão, abarrotado de lavas e enxofre. É uma brancura total que cobre tudo, feito denso véu prateado, só sabemos da presença de outrém pelo barulho do ar saindo de suas ventas quentes ou pelo cheiro nauseabundo eliminado por orifício na outra extremidade do organismo que, os mais ingênuos, jurariam de pés juntos, tratar-se de odor proveniente de um cadáver em putrefação, Ingénuos eles, coitados. É culpa da batata doce.
A névoa serve apenas de aviso, Corram logo, Façam o que têm que fazer, Vai chover, Vai chover, dizem na linguagem de névoas, com tanta certeza quanto o profeta do tempo.
Dito e feito. Minutos depois abrem-se as comportas dos céus, com tanta veemência que parece que tudo vai ficar inundado, Mas não vai, diz minha avó, O arco-íris logo aparecerá para nos lembrar que dilúvio nunca mais teremos, Queira Deus, amém!
No início ela começa tímida, acanhada, para logo em seguida mostrar sua fúria, sua potência, a força de algo que ficou algum tempo esperando para lavar a alma daqueles que dias antes estavam de bocas abertas para os céus, rogando a presença de sua senhoria a chuva.
No finalzinho da tarde ela dá uma trégua, mas continua firme, constante, como lágrimas choradas por alguém solitário, nostálgico, longe demais de sua terra para se lembrar quão bom é o cheiro da chuva.
Shhhhhhhhhhh, Não estou pedindo silêncio, é apenas o chiado da chuva lá fora misturado ao barulho que sai do pequeno rádio que alguém tenta sintonizar aqui dentro para saber as notícias, Chove muito nas ilhas, diz o locutor, Disso já sabemos, replica alguém dentro de casa. Desculpemos seu mau-humor, deve ser culpa do frio, saiu para brincar na chuva e agora está sem casaco, não há para todos, quem conseguir um é seu, ao menos por hoje.
Jantamos todos, quietos. Para quê falar, se lá fora a chuva canta, afinada, sua canção de embalar, acalentando nossas turbulentas almas, Calma menino, Dorme, diz a chuva, tranquila, assim nesse ritmo. Dormirei, mas não agora. Dormirei apenas quando acabar de ouvir as histórias que minha avó conta, daquele tempo antigo, quando reinavam a seca e a fome nas ilhas, daquele tempo em que Nhô lobo foi para o sul e Chibinho foi para o norte, à procura de comida, daquele tempo em que minha avó encontrou um cordão de ouro e o trocou por dois litros de feijão, daquele tempo em que se colocava dois litros de água em um punhado de feijão, Todos hão-de comer, daquele tempo em que comer era privilégio de poucos, mas necessidade de todos, Pelo amor de Deus senhor, só um pedaço de pão, daquele tempo...daquele tempo...Shhhhhhhhhhhhh, peço silêncio, as crianças dormiram.

Aquele abraço.
Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro