segunda-feira, 30 de junho de 2008

Mané Nharmun

Afinal, é mané nharmun tem um bodi matxu capado ou um bodi motxu capado? Essa discussão aconteceu, em outras eras, quando criança, e na noite de ano novo, quando eu e meus amigos havíamos saído para 'tirar boas festas'.
Bom, eu, como garoto criado no interior, sempre soube que bode era matxu, sempre não, sejamos sinceros, mas pelo menos desde aquela tarde em que eu pedi ao meu pai para ordenhar o bode ao ver suas enormes "tetas" penduradas, não são tetas meu filho, que seriam então, pensava eu. Depois desse dia, sabia eu que um bode, obrigatoriamente é matxu, que o digam suas enormes "tetas" penduradas.
Sem dúvidas quanto à masculinidade do bode de mané, nharmun, continuamos a tirar boas festas, ganhando míseros trocados, como são txipes as pessoas da cidade, pois é, 5 escudos para dividirmos por nós 5 também não dá, roscon são as pessoas de Chã das Caldeiras que nos dão batata, galinha, vinho e o mais que tiverem, é?, é.
O dia anterior à noite de ano novo também é repleto de coisas boas. O preparo dos instrumentos qua haveremos de usar na nossa saga de migalhas de centavos é uma alegria só. Primeiro os chocalhos, feitos de lata de malta, cheia de cascalhos ou de um pedaço de pau, com tampinhas de cerveja cravadas, fixas por umprego roubado na oficina de Torrado. O violão não é para quem quer, é para quem pode, não comprar, mas fazer, geralmente filho ou afilhado de um carpinteiro.
Às vezes, em vez de dinheiro ou pedaços de bolo, ganhávamos umas pragas rogadas por alguma mãe cujo bebé foi acordado, pelo desafinado coro, na hora de pel ba kumê mandjoka seku na padjigal. Culpa do mané, foi ele quem pediu um ano más midjoradu.
Em Chã das Caldeiras, como disse na hora de reclamar dos 5 escudos ganhos, a dividir por 5 cabeças, praticamente nada nas fora para cada um, aqui as coisas são diferentes, a noite é mais recheada de bens materiais. Também, mané nharmun segue embriagado de alegria, ou seria manecon?, ao embalo das cordas afinadas do violão, do som seco do recu-recu, das vozes mais soltas, culpa da bebida inebriante.
Ao acordarmos, nós, sim porque muita gente nem dormiu, esperando amanhecer para chegar na casa do padrinho, vamos todos pedir bençon, bom dia, bom anos, boas festas, dizemos, Deus txiganu otanu ma dia doji, ku paz, ku gosto, ku alegria, sem num brigonha des mundo, respondem os pais e/ou padrinhos.
Naquela épóca eu gostava mais do que vinha a seguir à benção proferida, geralmente, moedas tilintantes, que pouco depois eu gastaria em drops e que meus amigos da cidade gastariam em bombinhas e aluguéis de bicicleta no prisídio. Uns faturam mais alugando suas bicicletas novinhas, outros faturam apenas quando se dão por estouradas as rodas das novinhas bicicletas dos outros, foi o irmão daquele menino da bicicleta velha que pôs ambrodju no chã, lamenta-se alguém. Paciência. Quem não tem mãos coça-se como pode. Espere agora para o próximo ano.
Tomara, realmente, que o ano novo chegue, como disse minha avó, com paz, gosto e alegria, sem nada do que se envergonhar.
Posto isso, ratificamos que o bodi do mané é motxu, não tem chifres. Redundante seria cantarmos que ele é matxu, pelo menos para mim seria algo nesse sentido, não tivesse visto o tamanho dos seus argumentos, aqueles pendurados.

Aquele abraço!
Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Charmosa Cidade

A mais linda entre as cidades. Esta é São Filipe, minha terra, a mãe de todos os meus sonhos.
Acanhada, ela olha sempre para longe, para o imenso oceano, tão azul quanto os sonhos dos que nela moram, sempre à espera que um navio traga uma esperança distante, um sonho há muito esquecido.
Quisera eu que fosses mulher, linda, pois assim todos os teus filhos a ti dedicariam os seus mais perfeitos versos, escritos sempre sob a fúria pujante da saudade.
Difícil é não sentir saudades de tuas pracinhas lindas, arrumadas de forma a que suas imagens se entranhem no mais profundo giro de nossos cérebros.
Teu cheiro, numa manhã de chuva, sempre há de estimular cada receptor olfativo existente no mais profundo do nosso inconsciente.
É tudo perfeito.
É manhã. Já os carros começam a chegar pelas poucas e estreitas ruas que desembocam quase todas no largo de Cruz de Paz. E todos sentem a paz da cidade, acolhendo cada um como filho amado, repassando coragem para enfrentar mais um dia cheio, de trabalho e alegria.
Meio-dia. As crianças acabam de sair das escolas, correm livres pelas ruas. Os adolescentes saem do licéu, mas nem todos seguem para suas casas, alguns esperam os carros que os levarão de volta para seus lares no interior, outros ainda vão para o prisídio encontrar seus amores, os seus únicos amores, até que descubram que vários outros únicos amores hão de aparecer em suas vidas. Nesse tempo que passou, acelerado por entre os muitos beijos apaixonados, passam outros alunos que entrarão agora à tarde, vamos rápido que o sino já tocou e o chefe de turma nos marcará falta de atraso, dizem uns aos outros, mesmo sem palavras.
Final do dia. Para alguns, a hora mais esperada. É a hora de dar vida à paixão escondida, é o momento de ganhar coragem para se declarar ao seu amor. Não perca tempo, olha para os lados e verás a cara de felicidade dos muitos que já se declararam e agora, na parte mais escura do 'polivalente', se entregam sem medo aos beijos e a outras coisas mais, das quais não podemos falar agora, olha a hora. Nós não. Eles sim, principalmente ele, que há muito vem fazendo propostas mais assanhadas a ela, que louca de vontade está, mas que resiste bravamente. Puro charme. Não demorará muito e todos nós ouviremos suas histórias picantes nos intervalos no licéu. Sempre há o que fica escondido vendo tudo, graças a Deus, pois sem esses o que seria de nós, 'patos' inveterados?! Esses são nossos verdadeiros hérois.
As mulheres de São Filipe sempre intimidaram a maioria de nós adolescentes, elas são tão desinibidas, sempre dois ou três passos na nossa frente. Por isso nós nutríamos um ódio latente, não apenas por elas, principalmente pelos garotos mais velhos, os sonhos de consumo delas, esses 'fumadores de padjinha', como os chamávamos, na tentativa infrutífera de nos vingar. Impossível, eles sempre namoravam as mais desejadas e, necessariamente, desejáveis.
Talvez seja por isso que começamos a reparar mais na mulheres do interior. Não por serem menos belas, elas são lindíssimas. Mais até que as da cidade. Talvez por terem um charme natural, não camuflado pela máscara das mulheres da cidade. Hoje acho que esse charme advém da impressão intrínseca de ingenuidade que elas carregam. Privilégio delas. Quem as conhece mais intimamente diz que, em boa verdade, é só impressão, que os ingénuos somos nós os homens. Por isso desisti de tentar entender as mulheres, temos que aceitá-las como são. Deus, depois que fez a mulher, olhou para sua obra e viu que era tudo 'muito bom'. Quem somos nós para discordar?!
Começa outro dia. É manhã. Já os carros começam a chegar pelas poucas e estreitas ruas...e assim desenrola a vida na mais charmosa das cidades, São Filipe, a mãe de todos os meus sonhos.

Aquele abraço
Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro

quarta-feira, 18 de junho de 2008

POST-MORTEM

Homenagens são lindas, emocionantes, marcantes...mas eu sempre me pergunto por que a maioria delas é feita apenas quando o homenageado morre, quando esse não pode mais agradecer pelas palavras a ele dirigidas, quando ele não mais pode chorar ou até esboçar um sorriso ao concordar com o que está sendo dito?!
Era uma vez um menino nascido e criado nos subúrbios da cidade de Mindelo, Ilha de São Vicente, Cabo Verde. Igual à maioria dos outros meninos pobres, era feliz com o pouco que tinha...o carrinho de lata, a bola de meia, o cão magro, mas muitos amigos, família grande e feliz e muitos e lindos sonhos. Vou ser médico quando crescer - dizia ele aos amigos. Depois de todos rirem muito, continuaram cantando 'mané nha 'rmun' e pedindo 'boas-festas' nas casas dos vizinhos. Era noite de ano-novo.
E chegou o ano novo e com ele renovação das esperanças, este ano há de ser melhor, vai chover mais, meus filhos vão continuar estudando, hei de começar a trabalhar, pensava em voz alta a mãe do menino, achando, talvez, que pensando em voz alta seus pensamentos chegariam mais rápido aos ouvidos de Deus.
Muitos 'manés nha r'muns' depois o menino, homem agora, desculpem o acto falho, conseguiu o que queria. Entrou numa faculdade de medicina, longe de casa, longe da família, longe dos amigos. Mas ele não deve chorar agora de saudade, afinal de contas, neste lugar onde ele se encontra nem existe a palavra saudade nos dicionários. Se chorasse não valeria a pena todo o sacrifício que ele fez, estudar no livro cheio de mofo, na claridade da lua que entrava pelas frestas da janela do quarto, abarrotado de irmãos, dormindo no colchão de palha estirado nho chão. Não hei de chorar, assegura-se ele.
Dois longos anos depois, ele se encontrava de volta à terra, não de férias, mas definitivamente, às custas de problemas de saúde, oriundos talvez, da infância pobre, alimentação precária, desnutrição quem sabe, a que a maioria de nós foi sujeita em nossas míseras casas.
Mas ele não abandonou seu sonho, pois um sonho é algo que resiste aos imprevistos da vida, não é um desejo, é um sonho, minha gente.
Continuam os problemas de saúde, assim como continua a sua coragem, a sua sede de vencer na vida, longe de casa, longe da família, longe dos amigos, longe do filho amado.
Falta agora pouco mais de um ano para o menino, sim, porque alguém com um coração tão puro só pode ser um menino, dizia que em pouco mais de um ano o menino formar-se-á Médico. Nem acredito, meu Deus do céu! Eu estou chegando lá.
Miocardiopatia hipertrófica e edema agudo de pulmão: Causa mortis.
Sim, no final da luta, nosso querido sucumbiu nas garras daquele que ninguém vence. A causa dos seus problemas de saúde era uma doença congênita que propicia a pessoa a ter arritmias cardíacas, causando baixo fluxo sanguíneo para o cérebro e levando ao aparecimento de convulsões, o mal do qual padecia meu amigo. Por infelicidade dele e de todos nós, amigos dele, ele só descobriu a razão de seu padecer, depois de morto.
Depois de toda essa tragédia, aprendi que tudo o que tivermos para falar que possa melhorar a vida de um ente querido nosso, devemos falá-lo enquanto essas palavras podem ser escutadas, não devem ser palavras jogadas ao vento.
Meu querido e saudoso amigo Tchindo, me arrependo por tudo que eu podia ter feito para te ajudar e, porventura, não tenha feito.
Amor eterno.
Dedico essas linhas ao meu saudoso amigo, Alcindo João Pires de Antônia - Tchindo.

Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Fumaça

Fumaça

Nem o sol me acode
apressado, se esconde
pra de mim se apoderar
a noite amarga, sem luar

e essa paz mortal
me aflige, me suga
me leva caminhando,
sem pressas

a noite fede
seus ossos são muitos
seca, não chora
não chove nunca

e cheira a fumaça
branca, e em paz
eu me calo, e olho
pra longe, pra minha terra.

E me deixo embalar,
pelo som da minha terra
chamando seu filho
há muito perdido no mundo

e eu nem choro,
nem isso posso
meu pecado é grande
nem a chuva me pode lavar

e a música me embala
e eu choro...
minha terra me perdoa
e eu a perdôo, em paz.

Eliezer Monteiro
Aquele abraço.
Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro

terça-feira, 3 de junho de 2008

Coisas da minha Terra

Era uma vez, numa terra não muito longe do meu coração, numa época não apagada da minha memória, as pessoas eram muito felizes. Os adultos dançavam 'paravante' e as crianças dormiam embaladas pelas histórias de 'Nhô Lobo,Chibinho e Tia Ganga'...Nho lobo foi para o sul e Chibinho foi para o norte, à procura de comida por ser grande a fome. Lembro-me das histórias como se ontem as tivesse ouvido.
Dizem que no 'paravante' os homens rematavam as damas, pagavam literalmente por elas. Quem pagasse mais dançaria a noite inteira com sua dama. Ele havia pagado por ela, ora bolas.
De vez em quando surgiam uns mais desaforados que tentavam dançar com damas por outros já arrematadas. Hoje vejo que aquilo era só um pretexto para sair no braço, do dente ou na pedrada, com o felizardo que havia pagado para dançar com a dama, a noite inteira, pelo amor de Deus. Depois de uns olhos roxos e alguns dentes quebrados, tudo voltava ao normal, ao ritmo do violino de Djonzin de Dina. 'Talaia baxu' era sempre o carro-chefe. Quem sabia dançar se exibia e quem não sabia (geralmente os brigões não sabiam dançar) se escondia.
A lua, cheia, está já no meio do céu e ilumina a caldeira inteira. O baile segue animado, só não sei se mais animado que o sonho do menino que havia escutado a história contada pela avó. Nessa parte do sonho 'Chibinho' já está na figueira cantando 'figueira mama riba' e comendo os figos mais doces que existem no mundo das histórias. 'Nhô lobo' continua ainda no sul comendo grilo, pois essa terra é amaldiçoada, só tem 'farroba di spin'. Talvez assim seja desde que os habitantes de determinada zona falaram 'bongin pagan pan panhabu'. Soberba é boba, como se diz na minha terra...
O baile se arrasta para o final, com o mesmo vigor que muitos que foram ao baile e que agora estão rindo à toa, graças às muitas canecas de manecon.
Já não é noitinha e já é manhã, outro dia.
E assim o tempo passa, as primaveras abraçando os verões e a chuva lavando nossas almas, geração após geração.
E assim são as coisas da minha Terra.
Stória kaba, balá n'borka.
Aquele abraço.
Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro