sábado, 27 de setembro de 2008

Secas

Caro amigo, se for noite onde estiveres, feche os olhos, relaxe e sonhe, mas se for dia, arranque um fio de pustana porque a história via começar.
Era uma vez Nhô lobo e Chibinho, há muitos anos, quando nossa terra ainda era pouco habitada, em épocas de muita fome, épocas que renderam muitas histórias, como esta que agora começa. Dizia, Nhô lobo e Chibinho, forçados pela excassez de alimentos, decidiram ir para os extremos opostos da ilha, Eu vou para o sul, disse o sobrinho, EU vou para o sul, disse o parente mais velho, imaginando que o sul da ilha fosse zona de muitas farturas, É óbvio, senão esse malandro do meu sobrinho não teria escolhido ir para esse lado. Mal sabia ele que o outro já sabia das novas da região norte, cheio de milho para comer, assado, cozido com mantega terra ou até iladu com óleo quente, feijão para todos os gostos, fijon figuera, fijon gróz, faba, bongin, bangolon, balombolu, mangu, figo...Vou parar de pensar, Se o lobo olhar para mim agora com certeza me verá salivando, agu kortadu na boka, E saberá que o paraíso é ao norte desta terra.
E foram eles apressados, mentalmente falando, pois as pernas magras, essas mal aguentam sustentar o leve peso de seus corpos, que diremos de andar apressados.
Nhô lobo sempre foi um ser gordo, peludo. Quando eu ouvia as histórias, no funco deitado de costas, olhando as estrelas através do buraco no telhado, causado pelo menino que arrancou um punhado de palha para acender o fogão de lenha, continuemos, ouvindo as histórias imaginava o Senhor lobo como sendo um bode velho, chifrudo, fedorento, mas amigável, era uma figura que não me fazia sentir medo. O Chibinho eu já via como sendo um cabritinho, esperto, ágil, principalmente no que dizia respeito a enganar seu tio, o Lobo.
Feitas essas ressalvas, é hora de continuar o desenrolar da história, não esqueçamos que os dois estão famintos.
Chegados estão nos seus destinos, Chibinho, o cabrito, está já se deleitando com o manjar que citamos já, só não lembro se disse que o milho podia ser comido cozido com mantega terra. Eu sei, agu kortadu na boka, não é amigo?! No sul, o lobo está cada vez mais raquítico, só conseguiu alguns exemplares de gafanhotos secos, grilos magros escondidos embaixo de pedras, secas após tanto tempo sem ver chuva caindo dos céus. Vou para o norte, decide o chifrudo.
E foi. E chegou. E viu um ser gordo e peludo, chifrinhos já apontando e nem pôde reconhecer que aquele era seu sobrinho, Sobrinho querido, dá um abraço no teu tio. Foi só o sobrinho tentar dar-lhe o solicitado modo de cumprimento, que o bodão lhe cravou os dentes nas, já gordas, orelhas e lhe obrigou a contar o segredo de fazer brotar figos da figueira, indefinidamente, Pan kumê tê kin rabenta, ressalta o tio.
Um belo dia ele chegou ao céu. Falo do Nhô lobo. Ele se esqueceu que para fazer a figueira diminuir de tamanho, a senha era Figuera mama baxu. Empolgado, foi falando figuera mama riba até chegar ao céu. Reza a lenda que Deus fez um acordo com ele, que o amarrou numa corda e lhe deu um tambor, que teria de tocar assim que chegasse à terra, Então cortarei a corda, disse Deus. Isso reza a lenda, como já disse.
Nho meio do caminho ele se deparou com um passadinha di biku brumedju, com um pedaço de carne no bico e pediu um pedaço, Só se tocares uma música com esse tambor, e Ele tocou, emocionado, tão forte que Deus ouviu o batucado lá no céu. E fez o que já sabemos. Nhô lobo despencou kabeça baxu e caiu sobre um cajueiro. Lascou-se todo, mas nem se importou, ao experimentar daquele fruto estranho, que nasce de cabeça pra baixo mas que é, Sabi ês kuza. Foi nessa parte da história que passaram criancinhas e lhe pediram, Nhô lobo nho dánu simenti caju pa du bá assa, e ele retrucou com o famoso, N'tan caju tem simenti?
Dias depois, chuveu muito e retornaram para seus lares. Mas aí é outra história. Depois falaremos disso também.
Stória kaba , balá n'borka.
Aquele abraço.
Eliezer, Rio de Janeiro.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Regresso


Nos últimos sete anos tenho tentado, em vão, descrever em pensadas palavras como será o dia em que vou voltar aos braços da minha terra, como será a hora em que libertarei minha alma do peso avassalador, a ela imposto pela nostalgia ao longo das estações.
Queria eu que esse dia fosse um dia de chuva, não chuva forte, braba, queria que fosse apenas burrufu, aquela chuva miudinha, tranquila, aquela chuva que abre a madre dos céus e que anima o coração dos homens do campo, os poetas do ferro, enxadas e pás.
Nesse dia hei-de chorar a mais minúscula lágrima que durante esses anos venho guardando em um pote sagrado, pequeno, que vibra à mínima lembrança da terra amada.
Almejo muito poder deitar-me embaixo da minha videira e embaixo da minha figueira e saber que, deveras, não há quem me faça tremer, como predisse o profeta. Quero deitar-me sob o céu estrelado, quero contar as estrelas até vê-las se tornando tímidas sob o frescor da manhã que se avizinha, quero sentir o beijo doce do frio, passando no meu rosto pesado, às custas do tempo longo longe dos afagos da mãe terra, quero sentir sono e fazer questão de não adormecer por completo, ficar nesse estado de embriaguez mental imposto pela sedução irresistível dos atributos daquele pedaço de chão.
Impossível é não sonhar em chegar em casa, nesse dia, que há-de ser chuvoso, burrufu, reforcemos, e sentir o cheiro da chuva, cheiro de paz, cheiro de saudade.
Vou querer muito acordar cedo para ouvir as notícias no rádio de pilhas, velho, com antena de arame amassado, velhas notícias que hão-de encostar em recantos há muito não tocados do meu coração, dizendo em calma voz, Levanta filho, Abre os olhos que voltaste para casa.
Farei questão de dar vida às coisas mais simples, às coisas que foram para o ralo da vida, às coisas que fizeram a felicidade de um punhado grande de crianças, às coisas que realmente são importantes.
Quero me despir desse traje que a vida me obrigou a usar, feito de felicidades efémeras, passageiras, facilmente solúveis. Então usarei os trajes livres de futilidades, vestimentas simplórias, carregadas de significados, repletas de histórias, histórias de amor, de amizade, de felicidade.
Quero fazer poesia com as coisas da minha terra, quero poder usar palavras cheias de coisas por dizer, não apenas vocábulos ocos, vazios, cheios de coisa nenhuma.
Quero usufruir daquela sensação de paz que só existe naquele chão, aquele sentimento de realização, de liberdade, de vida vivida, não apenas sobrevivência.
Até lá vou sonhando, quem sabe não consiga mudar essas tortas linhas que passaram a léguas de ilucidar sobre o que sinto, sobre o que guardo naquele pote pequeno, onde minhas lágrimas por chorar se cumulam, chamado coração.
Aquele abraço.
Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Memórias


Quando criança, eu passava as férias de verão inteiras em Chã, na casa de meu pai, junto dos meus primos, irmãos, tios, amigos. Era uma enorme ansiedade na hora de ir, Vai menino que ainda perdes esse carro. Tinha razão quem me deu a bronca, havia poucos carros que faziam o transporte e sempre iam cheios, muito cheios. Quando, espremido por entre as pessoas, caixas de peixe, móveis e o tudo o mais que se podia transportar, pensava que, Aqui não cabe nem mais uma agulha, aparecia sempre um passageiro com um cabra ou um bode fedido, que sempre ficava a meu lado, Muito obrigado.
A saída era ao lado do mercado, sempre, por volta da uma hora com o sol já derretendo a ansiedade que alguns trouxeram de conhecer a cidade, passear no prisídio, comprar no mercado, Vamos embora condutor, Pelo amor de Deus, Vamos, e fomos.
Até Brandon a viagem não tinha muitas surpresas, a paisagem era a mesma, cor de poeira, amarga, povoada por alguns magros exemplares de cabras, comendo pedras, como aprenderam, para não perecerem.
A partir daí melhorava um pouco. Em Patin tinha sempre um bêbado para alegrar o povo que abarrotava o carro. Depois que todos riram tentei, sem êxito, saber o que se passara. Não consegui me mexer, de tão amassado que estava. Mal sabia que um passageiro menos cheiroso havia de ficar a meu lado, daqui a pouco e pelo resto da viagem.
Daqui a pouco chegamos a Txada furna, Cabeça fundon onde alguem sempre dava um queijo fresco de leite de cabra, Um pedaço para cada um, Dá um pedacinho para o menino lá no fundo, Coitado, está todo amassado.
O carro entrou, por fim, na caldeira amada, e eu desci. Os próximos trinta minutos de viagem seriam a pé, carregando o saco com as roupas, poucas, diga-se para conhecimento de todos, os doces para as crianças, a erva para minha avó fumar o canhoto e a bola para jogarmos no final do dia. Sempre alguém vinha a meu encontro, meus primos e os primos de meus primos, querendo saber das novidades da cidade, dos doces, sejamos sinceros. Dos doces anos de minha infância tenho eu enormes saudades.
No primeiro dia tinha muitos privilégios, quase nenhuma obrigação. Jantamos djagacida ku leti e fomos todos dormir, juntos, no colchão de capa de milho esticado no chão da sala, embalados pelas histórias de outros reinos contados pelos mais velhos.
De manhã todos são acordados pela avó, Acordem que o sol já vai alto, todos tomam o café e saem para a lida, os meninos para cuidar dos animais e as meninas para catar feijão, lenha e cuidar da casa.
Depois do almoço brincávamos um pouco de carrinho de lata e boneca de pano e depois íamos buscar água para os animais, Eles também são filhos de Deus, como diziam os mais velhos.
A rotina da tarde era igual ao da manhã de hoje e o da noite era igual ao da noite de ontem, a não ser pelo jantar, que hoje é papa ku leti, não djagacida, O cardápio é variado, como se vê.
Os três meses se passavam rapidamente e, antes que me atentasse a isso, era hora de voltar para a cidade, no mesmo carro, com as mesmas pessoas me amassando, não com o mesmo bode fedido, mas com um leitão igualmente fedorento a meu lado, Muito obrigado.

Aquele abraço.
Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro