sexta-feira, 24 de abril de 2009

Testamento



Quão bom seria poder ser enterrado na minha terra, embaixo de uma videira, deitado de costas, olhando para o céu, eternamente, nos dias mais ásperos e nos mais chuvosos, cinzas, frios, que apelam à solidão.

Quem sabe assim tanta água possa lavar minhas mágoas, meu peito apertado por tantos anos de ausência, minha alma espremida pelo peso da nostalgia, pela plenitude da solidão que me preenche.

Talvez o sol escaldante do mês de Maio consiga secar minhas lágrimas, aquelas nunca choradas, recalcadas, imerecidas lágrimas de um pecador, de um inveterado transgressor.

Queria ser coberto por toneladas de lavas incandescentes, pois seria essa a forma de incenerar meu espírito indigno, meus pés indignos de pisar nessa terra.

Mas antes disso tudo queria rever cada milímetro desse sagrado chão, sentir o cheiro das árvores de flores abertas, atraindo meu espírito, com mais veemência do que o mar atrai seus afogados.

Almejo vivenciar os mais perfeitos momentos já experimentados, na solidão da tarde, olhando pasmo, de longe, sozinho, para a fumaça suave, dançando em cima de um funco, hipnotizando minha alma, agarrando-a com força, terna e eternamente. Nem precisava, meu ser pertence a essa realidade, não importa onde esteja meu casco, minha essência é essa, inexoravelmente.

Suplico andar descalço nesse frio e seco chão, mas não tão seco quanto meu íntimo, não tão frio quanto isso a que fui obrigado a me transformar.

Quero sentir todas as emoçoes, desde o cheiro de bosta de vaca, que me lembra sempre de onde são minhas raízes, até ao arrepio que vivencio ao ver uma criança dançando, ingênua, feliz, na chuva que cai torrencialmente, lavando o desânimo de quem há muito vem esperando por ela, sempre, de olhos arregalados para o céu, suplicando, Deus não deixe faltar pão na minha mesa, não deixe faltar comida na boca de meus filhos, de todos eles, das dezenas deles, não deixe que a coragem se escape por entre meus dedos, não deixe que meu espírito fraqueje, em nome de Jesus, Amén!

Antes de morrer quero ouvir de novo as histórias do rapaz que está querendo namorar a menina da casa ao lado, Hoje é dia de festa, oji m-ta tral di kasa, sem dinheiro no bolso, sem futuro traçado, sem promessas a fazer, cujo charme reside na sua forma rude de ser, na sua coragem desmedida, de mangas enroladas, pronto para o que der e vier, pronto para encarar anos de seca quanto dias de chuva a fio, apto a dormir ao relento, com um pedaço de lava pretendendo ser seu travesseiro, quanto no conforto indescritível de seu funco. Que lugar no mundo é mais confortável que um funco?, eis o desafio lançado aos sábios.

Pela derradeira vez pretendo me deliciar comendo djagacida ku leti baka parida, no café, almoço ou jantar, eternamente, pois o que se compara a essa iguaria?! Estimula todas minhas papilas gustativas, todos os neurónios de meu hipocampo, todos os meus receptores de serotonina, me dá vida, leiga e sabiamente falando.

Queria apenas isso.

Depois posso ser enterrado, mas de costas, olhando eternamente a chuva caindo, numa noite perfeita, gelada, sem lua, tão crua quanto minh'alma.


Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro

5 comentários:

Danillon disse...

Esta ler o Testamento com uma música di fundo Sister Morphin de Die Punti foi desolador. Um abraço
Força Ponha mais

Burcan disse...

Valeu primo. Es dias n'sta monta um kuzanovu pa blog. nho aguarda

Anônimo disse...

E kumode nha rapaz?! Sodadi nho! Di pasajen pa li, es leitura foi mesmu un lavajen di alma. Nho e ka pizadu ku txakota
Abc, FFS

FFS disse...

Nho faze mas publikasaun, pamo nho e omi k ten alma riju. Nho ka ta txora nada, o gozzu ki nho sta na el! kakakakaka

eliezer disse...

Fonseca, nho pundi ki korbu koko nho? kreki argun badia tra nho di kasa. N'sta pensa um kuza novu pan po na area. mutu trabadju y poku inspirasaun. kel abrasaun y nho manda novidadis