Boca Fonte, Chã das Caldeiras, finais início dos anos 90.
Engraçado como era bom acordar cedo, com o galo se esforçando, a cada dia, para cantar mais bonito, vaidoso que ele é, dizia, era bom demais acordar cedo, seis e poucos da manhã, antes do nascer do sol, desfrutar de momentos de tranquilidade impossíveis de serem descritos, dar uma passadinha no curral e jogar milho às cabras, ordenhar o leite pro café e, óbvio, mixa trás di curral. Lembro-me bem que o curral ficava do lado direito de nossa casa, do lado de quem vai para São Filipe, na frente de um penero, dois na verdade, um ao lado do outro, tão juntos que, de longe, dava a impressão de ser um só.
O café da manhã era uma delícia, cumprimentados que já foram os mais velhos, com bom dia e nho/nha dan benson, dentro de uma cozinha, que lá nós chamamos de 'fogon', fumaça trabankado, odju brumedju ta baza águ, mas todos felizes, verdadeiramente.
Nesse pedacinho do céu moravam poucas famílias, a do meu pai, dos meus tios Pedrin e Maria, a do Viriato e a de seu filho Leonel, que carinhosamente chamávamos de leão brabu, leão sim, mas brabu não, como ele gostava de dizer. As casas ficavam assim distribuídas: mais ao norte, a nossa, casa de pedra de lava, de telha branca, sem divisão de cômodos, onde ficavam, milimetricamente distribuídos, a cama de minha avó Dina, no canto direito da casa, para quem entra, claro está, outra cama menor, ao lado da dela, onde dormiam minhas primas, nunca entendi como pouco mais de metro de cama podia caber tanta gente, uma mesa no centro da casa, de madeira, com 4 cadeiras em volta, onde meu pai gostava de tomar café da tarde, uma vitrine em frente à mesa, onde, em algum recanto, alguém escondia mantega baka, que meu pai gosta muito e eu adoro, que saudades disso, agu rabentan na boka gossin. No canto esquerdo da casa ficava a cama de meu pai, maravilhosamente colocada junto à parede, cama essa que era disputada, milímetro a milímetro pelos muitos filhos. Confesso hoje que eu era favorecido quase sempre, sou codé, sabe como é, né?!
Indo em direção a Portela ficava a casa de minha tia Maria, que chamávamos de mamá, maravilhosa mãe que ela era para nós todos, casa grande, 3 portas de cara para tancon, quintal grande onde adorávamos jogar bola de meia, cozinha com chaminé projetada e construída pelo meu tio Pedrin, grande pedreiro que ele é, que o digam os vários moradores da Caldeira, para quem ele fez currais, funcos e cisternas. Mais ao sul ficava a casa de Vriato, da qual, admito, não gostava muito, talvez fosse pelo pequeno, mas sinistro catxó que ele tinha, que vivia me mostrando os muitos e afiados dentes dele. No meio da quemada ficava a casa de leão, brabu não, como já sabemos, para onde adorávamos ir, interessados nos figos divinos que ele secava em cima da casa. Dia desses fomos lá, eu e meu inseparável camarada/primo Monterin, e não se encontrava ninguém em casa. Resolvemos subir ao telhado de padja para comer uns figos. Fizemos a festa, como se diz. Mais tarde leão deu um rugido e nos informou que tinha nos visto fazendo artes perto do cubículo dele, como ele gostava de chamar seu humilde lar. De vez em quando jogávamos bola com os filhos dele, Madeu, Artur e Palu, Lisandro era ainda moleque. No meu time: Montero, Isildo, canhoto bom, meus irmãos Vando e Nelito. No outro os primos já citados e minha prima filó, que gostava de meter a porrada nos adversários, com pontapés na canela, puxadas de cabelo e outros golpes de artes marciais, caso alguém fizesse golo e comemorasse. Isso quando ela não arrebentava a bola de meia Fosse alguém reclamar pra ver se não engolia a bola lá mesmo.
Mais ao norte ficava a Casa de Estado, ou Casa pia riba como eu adoro chamar, que nada mais era do que a adega de vinho dos agricultores da Caldeira. Casa pia Riba era linda, branca, com as telhas brancas, pátio de cimento, maravilhoso para o jogo de xuta-xuta. Na parte de trás ficavam os barris e outros materiais guardados e a casa do nosso guarda amado, Fidjin, pai de Juvinal, que depois de muitos anos o substitui na profissão. Que saudades, meu Deus. Atrás de Casa pia riba ficava um curral onde plantávamos batata inglesa. Mais ao norte, perto de Txada lapinha, que é, posso dizer, fronteira entre Boca Fonte e Dja di Lorna, ficava um lugar fechado, por muros por nós facilmente transponíveis, que chamávamos de Quintal, onde existiam videiras de uva strangeru e uma figueira, que eu juro que é aquela na qual nho lobo subiu e foi conhecer o céu. Figos doces, maravilhosamente doces, mais que aquelas que leão secava em cima de seu cubículo, sem falsas modéstias. O quintal ficava do lado direito, de quem segue em direção a Dja di lorna, expliquemos e continuemos, sem mais demoras, do lado direito de uma plantação de eucalíptos que chamávamos de dentu darve. Era um pedaço do Éden. Que árvores cheirosas! Aquele cheiro impregnava a alma daquelas crianças, estou certo disso, porque até hoje minha alma cheira a isso. Meu Deus, que saudades, meu pai!
Seguindo por dento darve era possível chegar a Fonte Tchan, origem do nome Boca Fonte, permito-me dizer. Era uma fonte antiga, que reservava a água que vinha da nescente que chamávamos de galaria, água essa que matava a sede da caldeira toda Lembro-me bem, Deus é testemunha, dos muitos burros, em fila, com a câmara de ar de camiões nas costas, cheia de água, rumando a portela e bangueira. Lembro-me também das crianças dos lados de Dja di lorna carregando água em latas e baldes de plástico, geralmente no final da tarde, com a sombra quase já a vestir de preto a imensa caldeira.
Engraçado como esse pedaço de chão nos fez tão felizes, eu, meus irmãos Gorete, Ilka, Neusa e Nezito (os gêmeos), Cacuca, Vando, Nelito, Pricília e Mônica, meus primos João, isildo, Denice, Montero e Lilica, meus amigos Madeu, Artur, Palo, Lisandro e suas irmãs Rosa, Rosalina, Sãozinha e Ida, Neves e Zequinha de Cá Vriato e, com certeza, todos os outros, de gerações anteriores, que também moravam lá.
Quatro casas, alguns currais e casa Pia riba, engolidos pelas lavas de nosso vulcão amigo, mas engolidos sem violência, diria que foram envoltos pelas lágrimas de um vulcão imponente, porém triste, por ter que guardar para sempre um pedaço de terra, feita por Deus, para dar alegria a uns poucos filizardos. Isso até é uma coisa com sabor de romance, guardar nossas pegadas, os restos de nossas rotas roupas, os restos de nossas humildes casas, uma parte linda de nossas vidas, para sempre, em suas já solidificadas lágrimas. Poder-se-ia muito bem dizer que aqui, em Boca Fonte, Jaz, inerte, a felicidade de um privilegiado punhado de gente. Aqui jaz minha tristeza, aqui jaz!
Eliezer Monteiro - Rio de Janeiro
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